CONSTELAÇÕES
DO EQUADOR
30 Maio de 1967. O tenente-coronel Odemegwu Ojukwu declara unilateralmente a independência do estado secessionista do Biafra, sobre o restante território da Nigéria. O governo federal presidido por Yakubu Gowon comanda uma ofensiva militar para recuperar a região. As hostilidades entre as duas partes irão dar inicio à guerra e ao primeiro conflito em larga escala em território africano. São Tomé e Príncipe, na época uma colónia portuguesa, marcada durante séculos pela escravatura e trabalho forçado, encontra-se próxima da região do Biafra por via aérea. A sua posição geográfica será determinante no decorrer da guerra. 50 anos depois, um fantasma procura vestígios na memória das vítimas desse acontecimento.
THE FIRST SHOT
That lone rifle-shot anonymous in the dark striding chest-high through a nervous suburb at the break of our season of thunders will yet steep its fligt and lodge more firmly than the greater noises ahead in the forehead of memory.


Preparei este filme baseado no arquivo digital de São Tomé na Fundação Mário Soares em Lisboa, tendo como centro uma pasta contendo vistos de centenas de crianças evacuadas da República do Biafra para a ilha de São Tomé na altura da Guerra Civil Nigeriana, ou Guerra do Biafra, entre 1967 e 1970, o conflito resultante da ordenação política herdada do domínio colonial Britânico.
Quase toda uma geração – a geração anterior à minha – fora transplantada de um cenário de guerra para uma minúscula ilha no meio do Atlântico onde se definiria o destino de cada um através de um mecanismo de ajuda humanitária sem precedente em complexidade e missão.
Ficou conhecida por Ponte Aérea São Tomé-Biafra e foi montada para abastecer a auto-proclamada República de mantimentos nos voos de ida, e para evacuar civis refugiados nos voos de volta.
Os testemunhos de Gil Pinto de Sousa e de Artur Alves Pereira, dois dos pilotos envolvidos a título voluntário, revelaram-me o carácter arrojado e sem precedentes desta operação.
Chego a São Tomé em Maio de 2017 para encontrar a memória deste acontecimento no mesmo estado em que se encontram dois dos aviões usados neste mecanismo: os Lockeed Superconstellations estão estacionados num campo devoluto ao lado do Aeroporto de São Tomé, aqui tiveram alguns usos originais, ora um restaurante, ora uma discoteca…hoje estão abandonados no meio de alta vegetação e infiltrados por água das temporadas chuvosas. São Tomé, na altura sob o domínio colonial Português, teve de se adaptar à circunstância de modo a apoiar a acção conjunta das organizações internacionais dedicadas à manutenção e êxito da ponte aérea. Foram convocadas as poucas pessoas na ilha que tinham formação para dar apoio hospitalar, e muitos foram recrutados para os armazéns de onde havia grande tentação – e acção – de desviar bens destinados aos aviões para o Biafra devido à novidade de produtos internacionais e curiosidade sobre o movimento sem precedentes na ilha. Um deles foi Vovô Ferro, conhecido como o Comandante Ferro, pois foi aprendiz e amigo do afamado Comandante Reis, o principal director de operações de aviação para a Ponte Aérea Biafra-São Tomé. Vovô Ferro encarnou o nosso fantasma através deste filme, o espírito que deriva na procura de uma identidade devastada em guerra civil, o espírito que nunca encontrou corpo estável onde repousar a sua personalidade. Chegado ao Arquivo Histórico de São Tomé, tive a oportunidade de ver e tocar nas fichas das crianças refugiadas que tinha visto em versão digital em Lisboa. Pude também ver de perto o diagnóstico de cada uma ao dar entrada e ao sair… A ponte aérea terminou com a rendição incondicional do Biafra e a ilha despediu-se das vítimas depois de ter posto todos os seus esforços à disposição para dar um horizonte às crianças. A guerra deixou marca de morte e destruição, e os seus efeitos são feridas por sarar na turbulenta história recente do continente Africano. Os milhões de mortos e de crianças famintas sedimentam na memória colectiva como fantasmas desejosos de materialização a qualquer momento e sob qualquer pretexto. Aconteceu muito antes de eu nascer e num território ao qual não pertenço, porém foi no país onde nasci que se travou uma parte decisiva deste conflito. A grande maioria dos civis que sobreviveram à guerra e ao genocídio deve-o a esta Ponte Aérea, pois o bloqueio sofrido tornara-se em cerco total com excepção de uma estreita fita aérea nocturna entre o aeroporto de São Tomé e uma pista cavada no mato em Uli no Biafra que cada dia era tapada com vegetação mal o sol nascia para não chamar a atenção da Força Aérea Nigeriana que usava equipamento Soviético de ponta contra o arsenal re-aproveitado da Segunda Guerra Mundial usado pelo Exército do Biafra. Pela primeira vez, as televisões, jornais e rádios do Ocidente chocavam a audiência com imagens de crianças estropiadas, mortas ou famintas inaugurando assim a forma mediática de pressão política contemporânea. Nos bastidores, na Quinta de Santo António em São Tomé, os voluntários, os médicos, os enfermeiros desdobravam- se para garantir oportunidade a cada uma das crianças de se humanizarem novamente. A vida foi salva, mas arrancadas às suas famílias, casas e terras, muitas crianças cresceram exiladas, sem qualquer sentimento de pertença e identidade, carregando consigo as recordações de um passado sangrento esquecido entretanto pelo mundo que outrora as colocou no Jornal da Noite. Ao pensar nelas, sinto uma afinidade. Se bem que por motivos incomparáveis, também cresci longe do meu país e a aculturação não sara o desenraizamento. Com elas regresso e procuro pelos seus espíritos, pelo seu passado e pelas reminiscências que ficaram desse acontecimento. A guerra do Biafra é hoje tida como fátuo acontecimento de arquivo num continente distante, quando eu perguntava em São Tomé sobre a ponte aérea às varias pessoas com quem me cruzava, a resposta era sempre a pergunta em modo surpreendido “mas porque está interessado agora nisso?” Espero que este filme possa ser uma franca resposta. Silas Tiny