O Canto do Ossobó

Um dia na Roça Rio do Ouro, Um dia na Roça Água-Izé... Rio do Ouro e Água-Izé foram as maiores roças de produção de cacau em São Tomé e Príncipe durante o período colonial português. A sua produção chegou a ser a maior a nível mundial em princípios do Século XX. Neste local milhares de homens e mulheres foram marcados pelo trabalho forçado em regime equiparado à escravatura. A Roça relembra o poder e domínio, injustiça e dor. Hoje, a degradação alastra pelo espaço colocando em risco de extinção a memória coletiva santomense. Passados trinta anos de ausência, regresso ao meu país e a este lugar para encontrar os vestígios desse passado.

“Quando alguém parte, alguém fica. O ponto por onde passou um homem, já não esta só, de solidão humana, o lugar por onde nenhum homem passou. As casas novas estão mais mortas que as velhas, porque as suas paredes são de pedra ou de aço, mas não de homens.”

César Vallejo

Nota de Intenções

A história não é suficiente para compreender a memória dos homens. Nem apenas os factos permitem chegar aos vestígios sobre os que já partiram e nada sobre eles foi dito. Apenas os poderemos encontrar nos sinais que restam e que desaparecem a cada dia que passa.

Eu, como descendente de escravos levados para ilhas de São Tomé e Príncipe, procuro encontrar as provas dessa vivência escrava, como forma de compreender o meu próprio presente. Aos cinco anos saí de São Tomé e vim para Portugal para não mais voltar. O meu país transformou-se numa miragem real, porém não reconhecível. Hoje procuro compreender parte do meu passado, como forma de enraizar e aprofundar a minha identidade.

Nestas ilhas, em nenhures do atlântico, ergueram-se túmulos e pirâmides no meio da floresta que mostram ao mundo não apenas a capacidade e o génio do homem sobre a natureza, mas também a permanência das suas ruínas como testemunho da vontade de eternidade de um sistema outrora idealizado. As Roças – estruturas coloniais de plantações e exploração - são testemunhas desse esforço de domínio e fazem parte da história e da memória colectiva de São Tomé e Príncipe. Por estes locais passaram milhares de homens e mulheres condenados ao trabalho forçado num regime de quasi-escravatura. A vida nas Roças desenhou servidão e sofrimento, alienação e pertença - um passado comum com vida própria que se alimenta da sua própria degradação.

Nesta viagem não pretendo contar a história factual e cronológica das roças. Da cronologia interessa-me reter o que sobrevive do passado nas coisas que estão vivas. Nesse sentido, a importância do quotidiano e a forma como ele se desenvolve são testemunhos disso como forma de dar voz as experiências dos meus antepassados que ainda repousam num silêncio anónimo.

A construção de uma memória para mim enquanto cineasta traduz-se na criação de imagens que possam ser e repor o sentido de identidade. A imagem deixa de ser um elemento passivo e explicativo de alguma coisa e passa a ser ela mesma a presença daquilo que se perdeu. A imagem de uma árvore, de uma casa, não é para mim apenas uma representação, mas sim presença sensível - objeto da memória ligada a um significado e ao desejo de situar um sentimento passado no presente. Por isso, este filme pretende ser um espaço de observação onde se cruzam histórias, reflexões pessoais e espaços. Enfim, todo um território indistinguível correspondente não só a um sentimento pessoal, mas também colectivo, que para além de apelar a um país, ou a uma determinada geografia, apela também à construção da memória como forma de definição humana.